Mauri Furlan, professor titular da UFSC e tradutor, conta como o caos do país e do mundo interferem no prazer da leitura
ABEU Reflete: edição de 03 de junho de 2020
Pandemia, instabilidade política no Brasil e tensões raciais no mundo. O momento não é de muita tranquilidade para quem se deixa afetar pelas crises que atravessam nossos tempos. O tradutor e professor titular de Letras na Universidade Federal de Santa Catarina, Mauri Furlan, fala na coluna ABEU Reflete desta semana sobre os impactos dessas turbulências no hábito de ler. Em um momento em que tínhamos supostamente mais tempo livre para ficar em casa e atualizar leituras, inquietações externas nos desconcentram e dão lugar a aflições. É o que Furlan salienta em seu artigo.
Literatura e quarentena na vivência de um leitor
A finitude inabarcável do universo da literatura embala às vezes o amante dos livros no sonho de viver inúmeras vidas para degustar infinitamente o objeto de seu desejo.
E quando de repente, inesperadamente, a vida para, liberando-nos de compromissos que nos ocupam e absorvem nosso tempo, confinando-nos em casa, vemos aí a grande oportunidade de saquearmos nossa biblioteca e devorarmos tudo aquilo por que há tanto tempo ansiávamos.
São tantos bons autores! Por onde começar?
O momento parece apropriado para adentrar aquelas obras extensas que reclamam mais fôlego sem sofrerem tantas interrupções. Passo os olhos pelas estantes que guardam os volumes por sua procedência linguística e de todos os lados há autores me chamando.
É preciso afinar a seleção.
E se fosse pelo tema da peste, confinamento, solidão?
É a arte que imita a vida, a ficção que extrapola a realidade? O inverso?
Claro que o momento pede também uma literatura mais científica. Além da peste, vivemos um apocalipse político! Uma conjuntura que requer reflexões especiais. E se…
No segundo dia de confinamento, o mensageiro virtual me entrega a confirmação de um compromisso de escrever um artigo com tema e tamanho determinados, em língua estrangeira. Uma alteração no projeto editorial me demanda então dedicação total imediata a este trabalho.
Paro tudo que ainda não havia parado, pesquisas, traduções e leituras de ócio. E já há mais de dois meses me ocupo com ele. E com esforço dobrado.
A concentração intelectual num período de estresse social, sanitário e político é muito comprometida. A busca pela última informação sobre os fatos nos prende às notícias televisivas ou digitais, à análise dos acontecimentos, à novela política do pior governante do planeta e seus desdobramentos no dia seguinte.
E de alguma forma isso nos desestabiliza, nos esgota, nos leva a considerações existenciais muito além das triviais. O país está sendo sacudido e destruído. Mesmo o prazeroso hábito da leitura tem sua libido lesada. Sem culpa.
Reconheço.
Este confinamento não me tem sido uma ilha deserta, com direito a relaxamento e leituras de ócio. Antes um exercício de controle emocional, de concentração, de autodisciplina, e de esperanças.
Parece mais fácil haver quarentena na literatura que literatura na quarentena, ah, Boccaccio!
E os livros continuam aí a me espreitar e aguardar pacientemente. Sabem que é neles que a alma encontra repouso
(Quiescit anima libris).
Mauri Furlan
Professor titular da UFSC
Tradutor e coordenador do Centrum Inuestigationis Latinitatis